Em tempos de polarização entre ocidente e oriente vale a pena lembrar de um curioso caso de amor entre duas mulheres durante os anos 50 e 60. O romance entre a escritora americana Jane Bowles e a marroquina Cherifa foi cercado de assombro, suspeitas e desconfianças de todos que as conheciam, árabes ou ocidentais. O motivo para tanta intriga foi simplesmente o enorme fosso entre duas culturas tão distantes. E, no entanto, o amor brotou entre as duas mulheres, a despeito da torcida contrária de ambos os lados.
O ano é 1947 e Jane e Paul Bowles, um casal muito moderno de escritores americanos, chega para uma longa temporada em Tânger, no Marrocos. Entediado da vida na América, Paul vivia buscando aventuras em países exóticos. Nem sempre Jane o acompanhava e nem mesmo Paul esperava que ela o fizesse - afinal, aquele não era um casamento típico. Para completar, Paul era gay, Jane era lésbica e o casamento, pasmem, não era de fachada - eles se amavam verdadeiramente.
Quando chegaram ao Marrocos - para morar definitivamente - o sentimento nacionalista da população começava a tomar proporções grandiosas, inspirado pela crescente popularidade da Liga Árabe. O país, no entanto, continuava sob tutela da França e o ambiente era aparentemente calmo.
Um dia, durante uma visita ao mercado da cidade, Jane ficou fascinada com uma vendedora de uma barraca de grãos - Cherifa. Ao contrário de Paul, que conseguia namoradinhos árabes em cada esquina, Jane logo descobriu a tarefa dificílima de penetrar no mundo das mulheres árabes, sempre escondidas atrás dos véus e dos muros dos haréns. Mas a americana gostava de aventuras e era persistente. Logo ficou amiga de Cherifa, mas percebeu que não podia convidá-la para ir ao seu quarto de hotel e nem seria convidada para conhecer a casa de Cherifa em Medina. Tudo isso porque, sendo muçulmana, Cherifa precisava da permissão de um homem de sua família para sair de casa ou para convidar qualquer um a entrar em sua própria casa. Convidar Jane, então, era uma heresia! Primeiro, tratava-se de uma "inimiga" européia. Não adiantava Jane explicar que era americana - para eles, ocidental era tudo a mesma coisa. Em segundo lugar, Jane era uma "nazarena", como os marroquinos costumavam chamar os cristãos em geral. Pouco facilitava Jane dizer que era judia - ela era muito diferente dos judeus de Tânger, pobres e de pele escura, que moravam em Medina (cidade velha) e com os quais os marroquinos tinham familiaridade.
Lembrem-se: o estado de Israel ainda não existia e judeus e árabes não eram inimigos declarados ainda. Mesmo diante de tantos problemas e mal-entendidos, o amor e a atração falaram mais alto: Jane e Cherifa começaram a namorar. Pensando em tornar tudo mais fácil, Jane saiu do hotel e alugou uma casa em Medina para que Cherifa pudesse freqüentá-la. Mesmo assim as coisas se complicaram. Cherifa só aparecia quando Jane lhe dava algum presente. A escritora americana logo entrou em crise com a situação: ora Charifa lhe pedia uma raquete de tênis, ora um par de sapatos e chegou até a pedir um táxi para trabalhar como motorista em Tânger!
Não demorou muito para os amigos americanos dos Bowles desconfiarem da marroquina: ela era uma interesseira que não dava a mínima para o amor de Jane. Seria verdade? Ou apenas outro mal-entendido? O que os amigos americanos não percebiam é que os familiares de Cherifa também a pressionavam do outro lado: Cherifa precisava tirar algum lucro material da relação.
Segundo o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, o marido deve sustentar a sua mulher e, portanto, Jane deveria sustentar Cherifa! Não que os familiares de Cherifa aprovassem ou reconhecessem a verdadeira natureza de sua relação com Jane mas, se a marroquina dedicava-se tanto à americana, a ponto de praticamente morar na mesma casa, era natural que existisse uma compensação financeira. Mas não adiantava Jane explicar. Os amigos dos Bowles e os familiares de Cherifa achavam aquela relação muito estranha.
A situação chegou ao ápice dez anos depois quando Jane Bowles sofreu um sério derrame que deixou sua capacidade de ler e escrever comprometida. Entre a comunidade americana em Tânger o boato era que Cherifa havia envenenado a sua amante - até mesmo Paul partilhava dessa suspeita. O cerco ao redor de Cherifa aumentou quando um criado achou pequenos patuás espalhados pela casa. Cherifa disse que sim, fora ela quem fizera os patuás, mas eram apenas uma mandinga para "pegar amor". Ninguém acreditou. Americanos que sempre ridicularizaram os hábitos e costumes primitivos dos marroquinos agora acreditavam na magia negra supostamente perpetrada por Cherifa. Eles a acusavam de ter tentado matar Jane e se esqueciam que a escritora americana era uma hipertensa que não tomava remédios, já sofrera alguns ataques e que bebia uma garrafa de gim por dia, acompanhada de 3 maços de cigarros.
Recuperada após vários tratamentos na América e Europa (mas ainda com afasia) Jane voltou a Tânger para morar com Cherifa. Coincidentemente, seu regresso foi logo após o Marrocos ter declarado sua independência, libertando-se da tutela européia depois de coroar o rei Mohammad V. Desta vez Jane encontrou uma Cherifa de cabeça erguida, talvez mais orgulhosa pela autonomia de seu país. Jane percebeu esta mudança quando, durante um pileque num bar, começou a distribuir dinheiro e as roupas que usava para quem passasse a sua frente. Cherifa que, como sempre, estava ao seu lado não aceitou nem um tostão. Desta vez recusou-se a receber qualquer coisa de Jane. Mas nunca a abandonou. Cuidou da amiga/amante americana enquanto Paul, o marido de Jane, viajava pelo mundo, para outros países mais exóticos, mais distantes e mais ao oriente - mais para lá ainda de Marrakesh.
Jane Bowles morreu em 1973, sozinha, numa clínica em Málaga, Espanha, depois de ser internada pelo marido. Paul morreu há poucos anos atrás. Quanto a Cherifa, ninguém sabe se está viva ou morta.
por Vange Leonel, publicado no MixBrasil circa 2002
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série de super curtas produzida e estrelada por Isabella Rossellinni hospedada no canal do Sundance no YouTube. Este episódio da arca de noé é bem educativo.
Maria Schneider no Rio trecho do livro "Éramos Apenas Paulistas", de Francisco Ramalho Jr (coleção Aplauso - Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - 2009)
"Este filme ["Das Tripas Coração" de Ana Carolina] inclusive tem uma história incrível que pouca gente sabe: a atriz principal era para ter sido Maria Schneider, estrela internacional de O Último Tango em Paris. Ela veio ao Brasil, mas se encontrava numa decadência deplorável. Estava tudo acertado para ela fazer o filme, quando numa determinada noite, após fazer um estrago horrível no seu quarto no Hotel Copacabana Palace (onde chegou até a quebrar o vaso sanitário além de destruir cortinas), ela simplesmente desapareceu. Sumiu completamente. Procuramos em todos os lugares, até em Cabo Frio, quando de repente Ana teve a ideia de telefonar para Paris, na possibilidade dela haver regressado. E não deu outra. Telefonamos, ela atendeu ao telefone em Paris, como se nada tivesse acontecido, e ficou tudo por isso mesmo. Saímos feito doidos atrás de uma atriz que pudesse substituí-la em tempo recorde, e quem salvou nossa pele foi a admirável Dina Sfat."
Purpurinas para Claudia Wonder Esta minha coluna foi publicada na revista Sui Generis em 1999. Assim que a edição foi às bancas, Claudia Wonder veio me abraçar, falando o quanto havia gostado da coluna. Nos conhecíamos desde o início dos anos 80, nós duas frequentadoras e performers roqueiras do Madame Satã. Republico a coluna aqui, como homenagem à companheira de tantos prazeres dionisíacos e lutas homéricas - love you Claudia.
Deus Abençoe os Andróginos
E então Deus criou o homem. E, se dele foi tirada uma costela para fazer a mulher, logicamente esse primeiro homem possuía dentro de si ambos os sexos: era um andrógino, feito à imagem e semelhança de seu Criador. E então os sexos divididos cometeram o Pecado Original.
Platão dizia que no início existiram o macho, a fêmea e o andrógino. Quando Zeus percebeu que a humanidade estava arrogantemente ameaçando seu poder divino, resolveu cortá-los ao meio. O andrógino, dividido, deu origem ao homem e à mulher, que passaram a procurar suas metades perdidas – esses eram heterossexuais. Da mesma maneira, o homem cortado ao meio dividiu-se em dois homens que também passaram a procurar suas metades masculinas, a mesma coisa acontecendo com as mulheres divididas – esses eram os homossexuais.
A androginia parece estar presente em todas as cosmogonias, explicando a origem do mundo e da humanidade. O ser que, dentro de si, reúne duas polaridades opostas simboliza origem e também um anseio pela totalidade, o desejo de voltar a ser completo.
Os alquimistas sempre souberam da importância do Andrógino Universal, que era como eles chamavam o mercúrio, único elemento capaz de reagir com todos os outros metais e substâncias. Seu caráter ambíguo, sua facilidade para apresentar-se em vários estados - sólido ou líquido - e sua propriedade de dissolver e coagular faziam dele um elemento de suprema importância para a descoberta do Ouro Alquímico. Jung, quando estudou a Alquimia, percebeu nela processos análogos aos que ocorrem na psique humana e, analogicamente, atribuiu ao andrógino uma função vital no processo de individuação. A integração do masculino e do feminino dentro do próprio individuo passou então a ser apontada como sinal de saúde, enquanto a divisão ou a supressão de um deles começou a ser vista como desequilíbrio e doença.
Embora Jung se referisse ao masculino e ao feminino de maneira simbólica o sexólogo Edward Carpenter, algumas décadas antes de Jung, via nos homossexuais a realização dessa integração entre os gêneros. Carpenter acreditava que os homossexuais eram a lembrança viva do período que antecedeu a divisão dos sexos: eles eram os novos andróginos. Ele elevou os homossexuais a uma instância até divina e dizia que eles eram a ponte entre os dois sexos, uma janela através da qual o homem poderia compreender a mulher e vice-versa. O terceiro sexo seria, então, de grande ajuda para a melhor convivência entre homens e mulheres e não uma degeneração da natureza. Pelo contrário: seriam imprescindíveis para o seu equilíbrio.
A androginia despertou a paixão de artistas inquietos, principalmente duas mulheres escritoras, que sempre buscaram libertar-se de dogmas sexistas. Djuna Barnes também via no homossexual uma representação nostálgica de reunião e totalidade. No livro Nightwood, perguntava “o que é esse amor que nós temos pelo invertido, o rapaz ou a garota? Eram deles que falavam todos os romances que nós já lemos. A garota perdida, o que é ela senão o príncipe encontrado? O príncipe no cavalo branco que todos nós sempre estivemos buscando. E o rapaz bonito que é uma garota, não é senão o príncipe-princesa em um bordado - nem um e a metade do outro, a pintura em um leque! Nós os amamos por essa razão”.
Virginia Woolf, a outra escritora, concebeu seu personagem Orlando como sendo metade do tempo homem e metade do tempo mulher. O livro Orlando, concebido como uma biografia, narra a transformação do personagem que intriga e provoca pela sua ambigüidade sexual:“Se compararmos o retrato de Orlando homem com o de Orlando mulher, veremos que, embora sejam ambos, indubitavelmente, uma e a mesma pessoa, há certas mudanças. O homem tem a mão livre para agarrar a espada; a mulher deve usá-la para impedir que as sedas escorreguem de seus ombros. O homem encara o mundo de frente como se ele fosse feito para seu uso e de acordo com o seu gosto. A mulher lança-lhe um olhar de esguelha, cheio de sutileza, e até de desconforto. Se usassem as mesmas roupas, é possível que sua maneira de olhar tivesse vindo a ser a mesma.” Neste verdadeiro manifesto anti-sexista e pró-androginia é revelada a visão de como seria um mundo sem essa ruptura abissal entre os gêneros. E quando diz que “são as roupas que nos usam e não nós que usamos as roupas” ela deixa claro que o legado cultural sexista - a roupa - acaba por aprisionar o indivíduo que, originalmente, é andrógino como Orlando, como o primeiro Adão e como aquele de Platão.
A androginia então parece estar mais perto da pureza e de Deus que manifestações cindidas de egos agarrados à idéia de que ser só homem basta. Ou ser só mulher basta. Mas cuidado, a aparência não é tudo: a verdadeira androginia está na alma e no espírito. Deus abençoe os andróginos, pois é deles o Reino dos Céus!
Joana Evangelista (trecho) este é um trecho da minha peça "Joana Evangelista", encenada pelos Satyros em 2006. a médica Joana Evangelista (inspirada em Joana D´Arc) é presa em flagrante ao operar numa clínica de aborto. Ela diz q faz abortos porque as vozes do Arcanjo Miguel e de Santa Catarina assim comandam. Mas Joana é também transexual transicionando e injeta testosterona. O investigador Carlos Darwin conduz o inquérito:
DARWIN – Escute, Joana, eu posso te ajudar... Você não percebe que essas vozes são uma mentira? ...Uma alucinação? E se fossem realmente vozes divinas, me diz... Como poderiam ordenar um aborto? Será que essas coisas que você anda tomando...
JOANA – (interrompe, brava) Como uma coisa oferecida a mim pelo Arcanjo Miguel pode ser ruim?
DARWIN – Quê? (ele tenta não perder a paciência) Um anjo mandou que você tomasse drogas?
JOANA – Já disse que não é alucinógeno, é testosterona!
DARWIN – (duvidando da seriedade dela) Por que ele mandaria você tomar isso?
JOANA – (ela cita solene as palavras do anjo) É como o anjo diz: “Para viver num mundo de homens vista suas roupas e viva como um deles!” (dramática) ...Ah! Doce e deliciosa tragédia de pertencer ao mundo masculino!
DARWIN – E que tragédia é essa?
JOANA – O medo da castração!
DARWIN sente um ligeiro incômodo entre as pernas.
JOANA – A minha vantagem, doutor Darwin, é que já nasci castrada!
Joana Evangelista transcrevo um trecho da minha peça "Joana Evangelista", encenada pelos Satyros em 2006. Na trama, Joana, médica aborteira, tenta convencer o delegado Darwin da grandeza de sua missão: ajudar as mulheres que escolhem abortar.
Joana – Pena, não é mesmo, que justo a tarefa que requer maior sensibilidade e capacidade de cuidar dos outros – ser mãe – nem mesmo é remunerada! Uma mulher não pode abandonar sua barriga e seguir em frente, ir embora. Um homem pode abandonar a barriga da mãe de seu filho e seguir em frente, ir embora, por horas, por dias, por meses, por uma vida inteira. É essa injustiça que tento reparar.
Darwin– Mães também abandonam seus filhos, dão para adoção...
Joana– O senhor faria isso? O que o senhor faria se ficasse grávido, doutor Darwin?
Darwin– Ora, eu não sei, nunca pensei nisso... pra quê? Eu sou homem, não tenho útero... de que adianta pensar nisso?
Joana– Então deixe esse assunto com as mulheres, deixe essa decisão com elas. Confie na experiência de milhões de gerações de úteros que souberam decidir a hora de procriar. E procriaram melhor depois, mais experientes.
Darwin– Mas a vida começa no útero! Como você pode conviver com a idéia de interromper uma vida?
Joana– O senhor não quer enxergar o corpo feminino! Mulher grávida é dois-em-um, não dá pra separar a vida do feto da vida da mãe, é dois-em-um, entende? É uma só vida, duplamente interligada, e se a mãe continua viva, como posso então ser acusada de interromper esta mesma vida?
Darwin– Safista e sofista, sofista e safista...
Joana– Não importa. O útero é um campo de batalha entre o corpo da mãe e o corpo do filho. A mulher dois-em-um é corpo e ambiente ao mesmo tempo, como você não entende isso? Às vezes, mesmo que ela não queira, ela aborta espontaneamente porque o corpo, o ambiente, não está preparado. Outras vezes, fazem como as macacas sagradas da Índia, que esfregam suas barrigas grávidas no chão até abortar quando percebem que não é época de procriar. Aborto é estratégia reprodutiva. Acredite, o corpo sabe a hora certa. E esse corpo é feminino. Nosso útero é nosso. Nós é que sabemos se nosso corpo vai conseguir dar conta de uma gestação, acredite, doutor Darwin! Nosso corpo é nosso. Será que isso se tornou tão clichê que vocês todos estão surdos?
pra ter uma idéia da minha escolha informada e consciente, vc pode ler esse texto do Celso Rocha de Barros (aliás, indico seu blog, NTPO), "Por que votarei em Dilma"
Sangue Africano coluna GLS publicada na Revista da Folha em 4 de abril de 2010
por Vange Leonel
Falta pouco. Em junho, o futebol brasileiro estreia em uma Copa do Mundo que, pela primeira vez na história, irá acontecer em solo africano. Muito justo. Sempre correu sangue africano nas veias dos maiores craques do esporte bretão.
Não bastasse, a África é o berço de toda a humanidade. Podemos ter a cor da pele mais clara ou mais escura, olhos menos ou mais puxados, mas todos temos um ancestral comum -e ele é africano.
Infelizmente, nossa "Mãe África" tem seu solo encharcado de sangue. Sangue derramado por colonizações predatórias, tráfico de escravos, intermináveis disputas étnicas, governos corruptos, guerras civis, terrorismo, segregação racial e um sem-número de infortúnios. Há também muito sangue despejado pelas meninas que sofrem ablação compulsória de seus clitóris e por milhares de mulheres estupradas diariamente em casa e nas ruas.
Cantora, compositora, colunista GLS e proto-escritora. Lésbica e feminista.
Atualmente assina a coluna GLS da Revista da Folha no jornal Folha de S.Paulo e a coluna "Vange Leonel" no Mix Brasil.