E então Deus criou o homem. E, se dele foi tirada uma costela para fazer a mulher, logicamente esse primeiro homem possuía dentro de si ambos os sexos: era um andrógino, feito à imagem e semelhança de seu Criador. E então os sexos divididos cometeram o Pecado Original.
Platão dizia que no início existiram o macho, a fêmea e o andrógino. Quando Zeus percebeu que a humanidade estava arrogantemente ameaçando seu poder divino, resolveu cortá-los ao meio. O andrógino, dividido, deu origem ao homem e à mulher, que passaram a procurar suas metades perdidas – esses eram heterossexuais. Da mesma maneira, o homem cortado ao meio dividiu-se em dois homens que também passaram a procurar suas metades masculinas, a mesma coisa acontecendo com as mulheres divididas – esses eram os homossexuais.
A androginia parece estar presente em todas as cosmogonias, explicando a origem do mundo e da humanidade. O ser que, dentro de si, reúne duas polaridades opostas simboliza origem e também um anseio pela totalidade, o desejo de voltar a ser completo.
Os alquimistas sempre souberam da importância do Andrógino Universal, que era como eles chamavam o mercúrio, único elemento capaz de reagir com todos os outros metais e substâncias. Seu caráter ambíguo, sua facilidade para apresentar-se em vários estados - sólido ou líquido - e sua propriedade de dissolver e coagular faziam dele um elemento de suprema importância para a descoberta do Ouro Alquímico. Jung, quando estudou a Alquimia, percebeu nela processos análogos aos que ocorrem na psique humana e, analogicamente, atribuiu ao andrógino uma função vital no processo de individuação. A integração do masculino e do feminino dentro do próprio individuo passou então a ser apontada como sinal de saúde, enquanto a divisão ou a supressão de um deles começou a ser vista como desequilíbrio e doença.
Embora Jung se referisse ao masculino e ao feminino de maneira simbólica o sexólogo Edward Carpenter, algumas décadas antes de Jung, via nos homossexuais a realização dessa integração entre os gêneros. Carpenter acreditava que os homossexuais eram a lembrança viva do período que antecedeu a divisão dos sexos: eles eram os novos andróginos. Ele elevou os homossexuais a uma instância até divina e dizia que eles eram a ponte entre os dois sexos, uma janela através da qual o homem poderia compreender a mulher e vice-versa. O terceiro sexo seria, então, de grande ajuda para a melhor convivência entre homens e mulheres e não uma degeneração da natureza. Pelo contrário: seriam imprescindíveis para o seu equilíbrio.
A androginia despertou a paixão de artistas inquietos, principalmente duas mulheres escritoras, que sempre buscaram libertar-se de dogmas sexistas. Djuna Barnes também via no homossexual uma representação nostálgica de reunião e totalidade. No livro Nightwood, perguntava “o que é esse amor que nós temos pelo invertido, o rapaz ou a garota? Eram deles que falavam todos os romances que nós já lemos. A garota perdida, o que é ela senão o príncipe encontrado? O príncipe no cavalo branco que todos nós sempre estivemos buscando. E o rapaz bonito que é uma garota, não é senão o príncipe-princesa em um bordado - nem um e a metade do outro, a pintura em um leque! Nós os amamos por essa razão”.
Virginia Woolf, a outra escritora, concebeu seu personagem Orlando como sendo metade do tempo homem e metade do tempo mulher. O livro Orlando, concebido como uma biografia, narra a transformação do personagem que intriga e provoca pela sua ambigüidade sexual: “Se compararmos o retrato de Orlando homem com o de Orlando mulher, veremos que, embora sejam ambos, indubitavelmente, uma e a mesma pessoa, há certas mudanças. O homem tem a mão livre para agarrar a espada; a mulher deve usá-la para impedir que as sedas escorreguem de seus ombros. O homem encara o mundo de frente como se ele fosse feito para seu uso e de acordo com o seu gosto. A mulher lança-lhe um olhar de esguelha, cheio de sutileza, e até de desconforto. Se usassem as mesmas roupas, é possível que sua maneira de olhar tivesse vindo a ser a mesma.” Neste verdadeiro manifesto anti-sexista e pró-androginia é revelada a visão de como seria um mundo sem essa ruptura abissal entre os gêneros. E quando diz que “são as roupas que nos usam e não nós que usamos as roupas” ela deixa claro que o legado cultural sexista - a roupa - acaba por aprisionar o indivíduo que, originalmente, é andrógino como Orlando, como o primeiro Adão e como aquele de Platão.
A androginia então parece estar mais perto da pureza e de Deus que manifestações cindidas de egos agarrados à idéia de que ser só homem basta. Ou ser só mulher basta. Mas cuidado, a aparência não é tudo: a verdadeira androginia está na alma e no espírito. Deus abençoe os andróginos, pois é deles o Reino dos Céus!
Vange Leonel
Sui Generis, julho de 1999
Cantora, compositora, colunista GLS e proto-escritora. Lésbica e feminista. Atualmente assina a coluna GLS da Revista da Folha no jornal Folha de S.Paulo e a coluna "Vange Leonel" no Mix Brasil.