Uma dupla do barulho
[por Vange Leonel]coluna GLS publicada na Revista da Folha em 12/02/2006Elas são casadas há quase duas décadas. Informalmente, já que casamento entre pessoas do mesmo sexo não é legalizado no Brasil. Mesmo assim, elas são casadas. Seus amigos solteiros costumam dizer que, se um dia casarem, querem um casamento como o delas. Os casados nelas se espelham. E todos perguntam: qual o segredo de um casamento tão firme e duradouro?
Elas dizem que não há segredo ou fórmula a ser seguida. Mas, generosamente, passam uma regrinha simples: jamais carreguem nas costas o peso da obrigação ou a expectativa da eternidade. "Nenhum amor é eterno a não ser aquele que se prolonga, indefinidamente, sabendo-se efêmero", elas dizem. Eu até usei a frase num livro que escrevi. Por essas e por outras, agradeço a elas a inspiração, a amizade e a sabedoria compartilhada.
Um dia, uma conhecida ousou dizer que ficar tanto tempo casada com a mesma pessoa só poderia ser falta de imaginação. Elas não se ofenderam com o comentário, julgando-o fruto de uma inveja tola. Mas fizeram questão de corrigir: "Engano seu, é preciso muita imaginação". Se fossem esnobes, poderiam ter citado Heráclito ("Não cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele") lembrando que o casamento não é estático nem travado de antemão: flui. Nada é monótono se existe imaginação.
Nunca vi duas pessoas tão diferentes e tão parecidas. Elas têm temperamentos quase opostos, mas concordam nos aspectos mais essenciais: na ética e no que esperam de seu amor. Porque, do amor, elas esperam só amor. Nada mais.
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