Dias de folia
coluna GLS publicada na Revista da Folha em 10/02/2008
por Vange Leonel Ela se olhou no espelho e viu sua imagem ao contrário. Seu braço direito era esquerdo, todo seu lado esquerdo era direito, mas, no fundo, sabia que o contrário dela era ela mesma. Apenas seus lados estavam trocados.
Entusiasmou-se com seu reflexo e resolveu atravessar o espelho, vivendo seu oposto, além do destro e do sinistro. Tomaria posse do outro sexo que, sentia, vivia sufocado dentro de si.
Tirou da gaveta um pé de meia que enrolou até formar um cilindro firme e macio. Depois, vestiu uma cueca do marido e acomodou o cilindro entre as pernas, como se fosse membro do próprio corpo.
Com rímel à prova d'água, ainda diante do espelho, desenhou costeletas, contornando a face, e um bigode. Antes, depilava o buço. Assaltou o armário à cata de calças, atou uma faixa bem justa em volta do tórax e sentiu-se feliz por ter seios tão pequenos que pudesse esconder.
Ouviu a batucada ao longe e saiu para a rua. Jogou-se no samba e foi mais um (uma?) no bloco dos travestidos. Por cinco dias, ficou à mercê de sua fantasia, esfregando-se nas moças, engolindo confetes e bebendo até cair. Pelo menos durante o Carnaval, esqueceu-se de que era mulher.
Quando a quarta-feira chegou, já não era homem e nem voltaria a ser mulher. Era apenas ela, sem espelho, sem fantasia ou membro de qualquer tecido. Descobriu que todo mundo merece, ainda que uma vez ao ano, se livrar de rótulo, gênero, sexo, classe, raça, tarja e categoria.
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