Eu preparo o café, ela abre o jornal, eu me espreguiço, ela sorri, eu esparramo queijo pela torrada, ela lê notícias e comenta, irônica e engraçada. Eu pergunto dos seus planos, ela não revela nada, eu faço que brigo, ela sabe que é blefe e me beija, apaixonada.
Saímos depois para que a cidade nos engula, para que o trabalho nos afaste e, enfim, o crepúsculo nos devolva uma à outra.
Em casa, nos juntamos numa dança coreografada para prolongar nosso conforto e bem-estar. Ela estende lençóis na corda, eu preparo um lanche, ela arruma a sala, eu lavo a louça, eu canto e ela ri. O que é bom é belo, gostoso e nos dá prazer.
Ela me conta cada dia um conto e eu embarco num romance infindo. Seus encantos são tantos que eu me esqueço que embora façamos todo dia quase o mesmo, esse mesmo cotidiano, visto de perto, se revela repleto de variações surpreendentes.
O café se transforma em vinho, a torrada se transmuta em fruta, o jornal se desdobra em poesia e da roupa na corda nascem dois corpos nus. Sua face, minha velha conhecida, sorri todo dia e, invariavelmente, um sorriso diferente.
© Folha de S.PauloMarcadores: coluna GLS Folha
Cantora, compositora, colunista GLS e proto-escritora. Lésbica e feminista. Atualmente assina a coluna GLS da Revista da Folha no jornal Folha de S.Paulo e a coluna "Vange Leonel" no Mix Brasil.