07 janeiro 2006
  Instinto Materno
Desconfie quando um homem resolve falar de instinto materno. Hoje a coluna do doutor Drauzio Varella na Folha de S.Paulo discorre sobre o assunto sem dar conta da enorme complexidade que envolve a questão. Não que haja incorreções ali, mas falta boa parte da história: o cara bem que poderia ter lido alguns estudos da maior especialista no assunto hoje, a bioantropóloga Sarah Blaffer-Hrdy.

Lá pelas tantas, o doutor Drauzio diz: "Exames do cérebro de ratas em época de aleitamento mostram que ocorre ativação de uma área cerebral conhecida como núcleo acumbens, na qual se integram neurônios encarregados das sensações de reforço e de recompensa, mecanismos semelhantes aos envolvidos na dependência de drogas. Curiosamente, ratas tornadas dependentes de cocaína, quando colocadas diante do dilema da escolha entre a droga e os filhotes recém-nascidos, dão preferência a estes". Do jeito como ele coloca as coisas, fica parecendo que a maternidade é sagrada e que o cérebro da mãe fica, irrevogavelmente, banhado por uma química que irá ligar a mãe ao filho.

Segundo Hrdy, não é bem assim. Para ela, a maternidade, desde a gravidez, é uma dura e intensa negociação entre os interesses de mãe e filho e não há nada "sagrado" ou "irrevogável" quando se fala em instinto materno. Para Hrdy, infanticídio, aborto e abandono também são facetas do instinto materno, por mais paradoxal que isso possa parecer. Segundo a bioantropóloga, se a mãe julgar que não tem condições físicas ou psicológicas (no caso dos animais não-humanos) para levar a termo a gestação ou criação dos filhotes, o instinto materno fará com que ela aborte, mate ou abandone a cria.

A noção vitoriana da santidade materna expressa nas entrelinhas da coluna do Drauzio é um grilhão muito antigo, usado para atar os pés e o útero da mulher.

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PS. Se você dispuser de um Adobe Acrobat, pode ler uma exposição breve das teorias sobre o instinto materno de Sarah Hrdy em dois artigos. O primeiro, da colunista de ciências do NY Times, Natalie Angier. O segundo, de Claudia Dowling, publicado na Discover Magazine. Os dois, em inglês. Para ler diretamente os estudos recentes de Hrdy, eles estão disponíveis em sua página.
 
Comments:
bom, bastava o drauzio relembrar o mito de medeia (entre outros tantos) para nao moralizar a mater-nidade, neh vange? puta cara chato. mania de sacralizar tudo, depois a mulherada pira e ninguem entende.

para mim a maternidade e o infanticidio podem perfeitamente caber no mesmo pacote. e geralmente cabem, e geralmente negociam com variaveis crueis como abandono X alimento, rejeicao X acolhimento.

e viva a neurose.
e deixa minha neurose em paz que a gente nunca foi santa, jah dizia norma jean, prontofalei.
 
sim, sim!, sensacional! o mito do "instinto materno", além de tudo, também camufla e alimenta relações bastante violentas entre mães e filhos aparentemente mansíssimos e amorosíssimos, e penaliza (pune?) igualmente mães e filhos, né?
 
é, Jezzie, e eu confesso que fiquei tão irritada com o cara que até fui sexista na minha primeira frase do post, né? É claro que homens podem falar sobre instinto materno, assim como não-mães, mas a gente tem que levar em conta essa ambivalência, como ilustrou o Pedro. Aliás, eu me lembro de uma entrevista da Soninha (vereadora) dizendo que maternidade não era aquele mar de rosas todo. Um amigo meu, que acabou de ter uma filha, confessou que ela é bonitinha, fofinha, mas ele ainda não sente que ela é "da família", hahahaha... Claro, ele disse isso em tom de humor, e o amor vai rolar, ele sabe. Mas aí, que amor não é ambivalente, né?
 
só um reparo: nada contra o dr Drauzio. Seu trabalho na luta contra a AIDS e no Carandiru é valioso. E ele é médico de um amigo meu. Apenas discordo de algumas abordagens evolutivas feitas em suas colunas, que julgo não fazer jus à complexidade do tema (e olha que eu sou darwinista!).
 
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Cantora, compositora, colunista GLS e proto-escritora. Lésbica e feminista. Atualmente assina a coluna GLS da Revista da Folha no jornal Folha de S.Paulo e a coluna "Vange Leonel" no Mix Brasil.

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